Este trabalho, publicado no nº 17 da revista uruguaia Alfaguara, foi apresentado como exposição no Segundo Encontro Latino-americano de Revistas Marxistas, realizado em Florianópolis, Brasil, de 1º a 4 de maio de 1997. O tema central desse encontro foi “80 anos da Revolução Bolchevique e a atualidade da luta anticapitalista”. 
Na edição nº 20, de maio de 1998, o autor retoma o tema, abordando uma polêmica com o dirigente Rafael Fernández, do Partido dos Trabalhadores do Uruguai. Na apresentação, explica que o objetivo da exposição (que ora apresentamos) era abrir um debate com o Partido Comunista Uruguaio, que defende explicitamente a tradição stalinista do partido monolítico. Não recebeu nenhuma resposta do PCU mas, em troca, a revista teórica do Partido Obrero da Argentina (En defensa del marxismo, nº 18) faz eco do texto de Venturini publicando um artigo crítico assinado por Rafael Fernández.

“A lembrança dos mortos oprime o cérebro dos vivos”: o conhecido adágio deixou de conservar toda sua vigência. Em especial, é a lembrança dos grandes homens, cujas idéias e ações tiveram uma influência destacada no curso da história, que se apodera das gerações posteriores, obstaculizando a análise crítica e a imaginação criadora.
Marx dizia, analisando a revolução de 1848 na França, que a classe operária somente poderia aprender através de uma série de derrotas. Referia-se à necessidade de assimilar criticamente a experiência realizada, compreendendo as insuficiências, os erros e as ilusões que inevitavelmente acompanham toda ação humana de envergadura.
Mas, muito mais difícil que aprender com as derrotas é aprender com os triunfos. Nada convence mais que uma ação política exitosa. Quando isso ocorre, a imaginação coletiva tende a elevar os principais líderes e propagandistas ao Olimpo mítico dos deuses, e essa transfiguração é alimentada por multidões de panegiristas (bem intencionados ou não), que se sentem obrigados a render culto aos novos heróis. São colocados sob silêncio os erros e vacilações, as opiniões contraditórias, as resoluções discutíveis que responderam às metamorfoses da luta e se suprime até o simples azar que ajudou ou obstaculizou um determinado desenvolvimento dos acontecimentos. Em uma palavra, o passado é retocado de acordo com os novos interesses políticos do presente.
No caso da Revolução Francesa (e do movimento do Iluminismo que a antecedeu), para tomar um exemplo, sua exaltação descontrolada contribuiu para alimentar o mito da “obscura” Idade Média. De acordo com esse mito, profusamente ilustrado nos manuais escolares de várias gerações, a história da humanidade sofreu uma interrupção de um milênio, entre o luminoso Império Romano (selvagem opressor de povos e culturas) e o não menos luminoso ascenso do capitalismo. A lenda tem como fio condutor conceitual a exaltação do Estado (antigo e moderno) contra a “anarquia” medieval, mote pejorativo com que se oculta a existência de comunidades camponesas livres e semilivres ao longo do espaço e do tempo do ocidente medieval, e que serão a base social do prodigioso progresso operado a partir do ano 1000.
No caso da Revolução Russa, o relevante papel que coube a Lênin, Trotsky e seus companheiros, no triunfo da revolução e na dramática guerra civil posterior, elevou à categoria de dogma indiscutível todas as orientações e resoluções que tomaram. Ali começou a tomar forma um dos mitos mais persistentes que se arrasta até o presente: o mito de que o triunfo da Revolução Russa foi possível pela existência de um partido monolítico, ferreamente centralizado e disciplinado, onde não tinham cabimento a existência de frações ou correntes internas e, muito menos, opiniões públicas individuais discrepantes das opiniões majoritárias.

O CENTRALISMO DEMOCRÁTICO JÁ NÃO É O QUE ERA

A experiência da luta da classe operária contra o capital colocou bem cedo o imperativo da unidade de ação para que essa luta resultasse exitosa. O poder econômico e político do capital, centralizado no Estado, somente podia ser contraposto ou quebrado se os explorados reunissem em uma só face suas forças dispersas. Desde a realização das primeiras greves, a dispersão e a divisão sempre foram sinônimos de derrota.
Mas, como essa unidade de ação somente poderia ser assentada na convicção dos trabalhadores, e essa não se consegue por decreto, a livre confrontação de idéias e opiniões é indispensável para levar à unidade de ação e ao desenvolvimento do movimento de luta. A mais ampla democracia não é, para os trabalhadores, um mero acréscimo ou adorno do qual podem prescindir de acordo com as circunstâncias mais ou menos favoráveis da luta, mas a condição com a qual fundamentam sua unidade de ação.
A mais absoluta liberdade na discussão, a mais férrea unidade de ação; tais são os requisitos que se resumem na célebre fórmula do centralismo democrático. Ninguém que quisesse lutar poderia questioná-lo.
Representa um abuso conceitual, no entanto, atribuir esta idéia elementar a Lênin ou aos bolcheviques , quando corresponde à tradição histórica de todo o movimento de luta dos explorados e, especificamente, a todas as organizações da classe operária, sindicais, sociais, cooperativas ou políticas dos últimos dois séculos.
Mas, posteriormente ao X Congresso do Partido Bolchevique e à aprovação das 21 Condições de Ingresso na Internacional Comunista, “centralismo democrático” é a fórmula que resume a concepção de um partido monolítico, rigidamente hierarquizado e centralizado, com uma disciplina quase militar. Podemos resumir essa concepção de partido com as seguintes características principais:
1) Realização de congressos a cada três anos ou mais;
2) Proibição de frações ou tendências internas em torno de posições políticas particulares ou discordantes;
3) Controle total pelo Comitê Central do órgão de imprensa central e de todas as publicações partidárias;
4) Poderes totais do Comitê Central sobre toda vida partidária, a saber: a) criação ou dissolução de organismos, destituição e intervenção de direções subordinadas, aceitação ou recusa de incorporações; b) imposição das orientações do CC em todas as frentes de atividade do partido;
5) Total subordinação dos organismos inferiores aos superiores: da célula ao comitê de bairro, deste ao comitê distrital e deste ao Comitê Central, em todos os temas, inclusive nos táticos, locais ou sindicais;
6) Discussão rigorosamente interna. Não se admite a publicação de posições pessoais não aprovadas pela direção;
7) Organismos de direção central escalonados piramidal e hierarquicamente. Por exemplo: um Comitê Central de 30 membros que se reúne a cada três meses; um Comitê Executivo de 15 membros que se reúne mensalmente; um Burô Político de 7 membros que se reúne semanalmente e um Secretariado de 3 membros que se reúne cotidianamente. Como se estabelece uma rigorosa disciplina de cada organismo, os três membros do Secretariado, uma vez terminada a discussão, votam em bloco no Burô; os sete do Burô no Executivo e os 15 do Executivo no Comitê Central. De maneira que a opinião de dois membros do Secretariado, se conquistam adesão no Burô, um voto a mais no executivo e um a mais no CC, controla o Partido. O panorama se completa com a total proibição de “transferir” discussões que se processam em um nível superior a um inferior.
Esta estrutura altamente hierárquica e centralizada pretende ser a expressão da consagrada fórmula do centralismo democrático, ainda que seja a concretização do contrário: a mais absoluta restrição autoritária na discussão e a mais férrea obediência à direção, o que está muito longe da unidade de ação proletária.

NÃO EXISTIU UMA TEORIA LENINISTA DA ORGANIZAÇÃO

O que caracteriza as opiniões de Lênin em matéria de organização é sempre a adequação aos objetivos revolucionários e às condições de mudança da luta. Por isso Lênin exibiu, ao longo de sua trajetória militante, um pragmatismo saudável e opiniões notavelmente renovadas em matéria de organização (como em tantos outros temas).
Em uma primeira etapa podemos encontrar textos de Lênin que recolhem a tradição clássica do marxismo quanto a função do partido:

“A luta dos operários contra os patrões, por suas necessidades cotidianas, lhes faz, por si mesma e de um modo inevitável, abordar os problemas públicos, os problemas políticos; lhes faz estudar como se dirige o Estado russo, como são feitas as leis e as normas e a quais interesses estas servem... A tarefa do partido não consiste em imaginar modismos para ajudar os operários, mas em aderir ao movimento operário, em iluminar o caminho e em ajudar os operários nesta luta que eles já iniciaram”.

Tratava-se da etapa da luta política contra o populismo e o terrorismo, onde Lênin insiste no partido como um partido da classe operária que se apóia em, e generaliza sua experiência de luta, e não como uma organização particular, distinta da organização operária, que trata de inculcar seus próprios “modismos”. Aqui Lênin recolhe o famoso texto do Manifesto Comunista:

“Os comunistas apenas se distinguem dos demais partidos proletários em que, por um lado, nas diferentes lutas nacionais dos proletários destacam e fazem valer os interesses comuns a todo o proletariado... e, por outro, em que nas diferentes fases do desenvolvimento por que passa a luta entre o proletariado e a burguesia, representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto”.

Em uma segunda etapa, que corresponde à luta teórica contra os economistas, nas condições de rigorosa ilegalidade e perseguição sob o czarismo, Lênin brigará por uma organização de militantes profissionais, formados na teoria revolucionária e rigorosamente clandestina.

“Um revolucionário profissional não é um operário que ganha um salário em uma fábrica. É um funcionário pago pelo partido... E revolucionário profissional vai ser tanto um intelectual, como todo operário que se destaque por suas condições... Todo agitador operário que tenha algum talento, que ‘prometa’, não deve trabalhar onze horas em uma fábrica. Devemos acertar de modo que viva por conta do partido...”

Era a época em que Lênin, polemizando com os economistas, ressaltará que a consciência de classe somente podia ser alcançada de fora do movimento operário. Assim, ainda antes do Que Fazer?, Lênin expressava que “a teoria da socialdemocracia surgiu na Rússia com absoluta independência do desenvolvimento espontâneo do movimento operário, como resultado natural inevitável do desenvolvimento do pensamento dos intelectuais revolucionários socialistas”. Aqui nos encontramos com um Lênin vanguardista, intelectualista, doutrinário, que privilegia uma organização do partido ultra-restrita e que se empenha no caráter diferenciado da organização partidária em relação à organização espontânea da classe operária.
Com a revolução de 1905 Lênin mudará novamente, e de forma espetacular, sua concepção de partido:

“As condições em que se desenvolve a atividade de nosso partido estão mudando radicalmente. Foram conquistadas as liberdades de reunião, associação e de imprensa... Nosso partido se intumesceu na clandestinidade: a clandestinidade se desmorona. Adiante, com maior audácia, empunhemos as novas armas, entreguemos a pessoas novas, ampliemos nossas bases de apoio, chamemos a todos os operários social-democratas, incorporemos eles às centenas e aos milhares às fileiras das organizações do partido! Que seus delegados animem as fileiras de nossos centros, trazendo o ar fresco da jovem Rússia revolucionária... É de se desejar que nas novas organizações tenha, para cada militante social-democrata intelectual, centenas de operários social-democratas”.

Nessa época (primavera de 1906) e referindo-se à criação dos sovietes, Lênin entoará uma verdadeira loa à espontaneidade:

“Esses órgãos foram fundados exclusivamente pelas camadas revolucionárias da população, foram fundados de uma maneira totalmente revolucionária, fora das leis e regulamentações, como um produto da atividade popular primitiva, como uma exibição da ação independente do povo”.

Nos encontramos aqui com um Lênin obreirista, espontaneísta, anti-intelectual, que confia cegamente na consciência revolucionária espontânea dos operários que estão transitando por uma experiência revolucionária e, por conseguinte, propõe um modelo de partido aberto, de massas. Partido de vanguarda ou partido de massas, partido de revolucionários profissionais ou partido de operários de fábrica, partido conspirativo restrito ou partido aberto legal. As polêmicas se sucederam ininterruptamente. Por décadas proliferaram os aprendizes de entomólogos buscando as citações de Lênin que fundamentaram uma ou outra concepção de partido. Mas as citações de Lênin, tiradas do contexto das circunstâncias concretas e das tarefas que se modificam, servem para qualquer coisa.
A única coisa certa é que não há uma teoria leninista da organização, salvo no sentido mais geral de que a organização do partido deve se corresponder com o objetivo geral da luta contra o capitalismo, pela transformação social mediante a luta de classes e deve se adequar às condições da luta.
O que sobrou como teoria leninista da organização ou como “centralismo democrático” é outra coisa. É a concepção de partido monolítico, rigidamente hierarquizado e centralizado, que terminou sendo canonizado pela tradição stalinista.

O BOLCHEVISMO NÃO ERA REGIDO PELO CENTRALISMO DEMOCRÁTICO

O “centralismo democrático”, tal como conhecemos hoje, é completamente alheio à tradição do bolchevismo. Qualquer aproximação com sua história indica que, inclusive logo após a tomada do poder, a corrente bolchevique, depois Partido Comunista (Bolchevique), foi todo o contrário de um partido monolítico.
No bolchevismo, qualquer militante do partido podia publicar sob sua assinatura, no órgão central partidário, suas opiniões discordantes com a direção ou com outros militantes, sem nenhum tipo de filtro ou censura. Ou seja, as polêmicas eram públicas.
Qualquer organização do partido, regional, sindical, artística ou simples agrupamento de amigos, podia publicar seus próprios órgãos de imprensa sem pedir permissão a ninguém. A luta de Lênin em O Que Fazer?, não era contra a existência de uma legião de publicações locais no partido operário social-democrata, para que fossem suprimidas, mas a favor de um órgão central que fosse a voz do conjunto do movimento.
Finalmente, a existência de correntes internas era parte da vida habitual do partido e não houve conferência ou congresso onde essas correntes não se organizassem e se expressassem livremente. A famosa anedota da “infidelidade” de Kamenev e Zinoviev, prévia à insurreição de outubro, demonstra qual era a tradição democrata no bolchevismo. O fato é conhecido. Quando o Comitê Central bolchevique, em princípios de outubro de 1917, discute a preparação da insurreição, Zinoviev e Kamenev votam contra, ficando em minoria, e não encontram nada melhor a fazer do que tornar pública sua posição, o que logicamente podia alertar o governo provisório para tentar abortar a ação. Lênin e Trotsky censuram acidamente a atitude dos dissidentes e os ameaçam para guardar silêncio, mas não são expulsos e continuam na direção do partido.
Quando se fala de “unidade de ação” e de “disciplina” no bolchevismo, deveria se ter em conta que, frente à decisão mais dramática e comprometida que pode tomar um partido revolucionário, como é a decisão de tomar o poder, o bolchevismo não foi monolítico e pecou pelo democratismo. Aqueles que faltaram com a disciplina nessa ocasião não eram recém chegados. Tratava-se de dois dos quadros mais antigos e experimentados do bolchevismo. A atitude de Kamenev e Zinoviev (errada, sem dúvida) somente pode ser explicada se for inscrita em uma tradição de luta aberta de idéias, de “absoluta liberdade na discussão”.
É o que, por exemplo, havia ocorrido alguns meses antes, na continuação da revolução de fevereiro, após a chegada de Lênin, quando este polemiza aberta e publicamente contra a posição da maioria da direção bolchevique, de apoio crítico ao governo provisório burguês (artigos, discursos públicos e as teses prévias à Conferência de Abril de 1917). Os defensores do mito do partido monolítico, conscientemente ou não, tergiversaram o conceito de unidade de ação pelo de unidade de opinião.
É esta tradição de luta de idéias do bolchevismo, pública e aberta, que começa a se perder a partir do momento em que o Partido Bolchevique se transforma em um partido de Estado e enfrenta as dramáticas contingências da guerra civil e do isolamento internacional, pela derrota da revolução operária na Europa.

O PARTIDO ÚNICO

A Revolução Russa, primeira revolução operária triunfante, foi cedo acossada pela reação interior e exterior, que desenvolveu uma guerra selvagem para esmagá-la. Nas condições da guerra civil, a oposição dos mencheviques e socialistas-revolucionários de direita à maioria bolchevique nos sovietes, tendia, a cada passo, a se transformar em uma oposição armada:

“Em abril de 1918 começou a intervenção estrangeira com o desembarque dos japoneses em Vladivostok, o que acalentou esperanças para todos os elementos que, na própria Rússia, estavam contra o regime. Na primavera e verão de 1918 Moscou se converteu em um foco em que foram tramados diversos e às vezes conjuntos complôs e intrigas dos agentes aliados e alemães, dos grupos fragmentados da direita e do centro e dos partidos da esquerda sobreviventes, contra o governo soviético”.

Alentados pela perspectiva da intervenção aliada, os esseristas (social-revolucionários) de direita, em sua conferência de partido celebrada em Moscou, em maio de 1918, defenderam abertamente uma política destinada a “derrocar a ditadura bolchevique e estabelecer um governo baseado no sufrágio universal e disposto a aceitar a ajuda aliada na guerra contra a Alemanha”. A resposta bolchevique foi o decreto de 14 de junho de 1918 do Comitê Executivo do Congresso dos Soviets, mediante a qual se excluía os esseristas de direita e mencheviques, por sua associação com “notórios contra-revolucionários” que “tratam de organizar ataques armados contra os operários e camponeses”.
Os esseristas de esquerda, que haviam abandonado o governo de comissários do povo por sua oposição ao Tratado de Brest-Litovsk, que consideravam uma traição, continuavam integrando os sovietes, mas por pouco tempo. Quando em 4 de julho de 1918 se reúne o V Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, os bolcheviques contam com 745 delegados e os esseristas de esquerda com 352, mas as relações entre os dois partidos eram extremamente tensas porque os esseristas, educados em uma velha tradição de ação direta e terrorismo, não renunciavam ao emprego desses métodos para sabotar o acordo com os alemães. Assim, em 6 de julho, dois esseristas (SR) de esquerda assassinam o embaixador alemão Mirbach, com a esperança de forçar a ruptura. A maior parte dos delegados esseristas ao V Congresso são detidos, incluindo a lendária revolucionária Maria Spiridónova, que admitiu que os assassinos haviam seguido suas instruções. Frente aos fatos, o V Congresso termina excluindo dos sovietes também os esseristas de esquerda, estabelecendo-se um regime soviético unipartidário. Os esseristas se lançam à ação direta contra os bolcheviques, assassinando o dirigente Uritski, em Petrogrado e atentando contra Lênin, que é gravemente ferido, em Moscou. E tudo isso tem lugar em meados de 1918, no começo da guerra civil que se estenderá até fins de 1920.
Repassamos os acontecimentos para remarcar que a constituição de uma ditadura unipartidária respondeu à lógica dos fatos, desatada por uma brutal intervenção imperialista que alentou a insurreição armada e a guerra civil pelo derrocamento do governo dos sovietes. Os bolcheviques se viram obrigados a estabelecer uma férrea ditadura, suprimindo todos os partidos de oposição e, em conseqüência, todas as liberdades públicas de reunião e associação, porque necessitaram assegurar sua retaguarda na guerra civil.

“Exigir de Lênin e seus companheiros, em semelhantes circunstâncias, que saibam criar como por arte de magia a melhor das democracias... seria pretender deles algo sobre-humano... o risco começa quando, fazendo da necessidade virtude, plasmam na teoria a tática à qual se viram empurrados por estas dramáticas circunstâncias e pretendem receitá-la como modelo a ser imitado pelo proletariado, como paradigma de tática socialista”.

De forma clarividente, Rosa Luxemburgo colocava, em fins de 1918, os riscos enormes que representava para a revolução a supressão da vida política:

Com a supressão da vida política em todo o país, os próprios soviets não poderão evitar sofrer uma paralisia cada vez mais extensa. Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa e de reunião irrestritas, sem o livre enfrentamento de opiniões, e em toda instituição pública, a vida se esgota, se torna aparente, e a única coisa que permanece ativa é a burocracia”.

O triunfo na guerra civil e contra a intervenção militar das principais potências do mundo foi uma verdadeira proeza. Os bolcheviques conseguiram, do nada, colocar em pé e equipar um exército de um milhão de homens, que chegou a intervir, simultaneamente, até em 14 frentes de batalha. Foi a época do “comunismo de guerra”, onde todos os recursos da sociedade se colocaram a serviço das necessidades da frente, implantando-se uma férrea ditadura. Foi estabelecido o alistamento obrigatório, tanto para o exército como para os grupos de trabalho na retaguarda. Tende a ser esquecido, não obstante, que esta férrea ditadura bolchevique se apoiou na adesão da imensa maioria da população pobre da cidade e do campo, assim como o duro isolamento internacional se via compensado pela intensa agitação no estrangeiro dos crescentes agrupamentos socialistas internacionalistas (depois comunistas), em defesa da revolução russa. Agitação que não excluía a sabotagem e a ação direta contra os aprestos bélicos das potências imperialistas. E. H. Carr brinda dados indiscutíveis do papel da agitação bolchevique para paralisar e desmoralizar o exército alemão, que representou por muitos meses o principal perigo para a revolução.
O triunfo revolucionário na guerra civil (1918-1920) superou, inclusive, as expectativas dos próprios bolcheviques. O próprio Lênin expressava em 1918:

“Se nossa revolução ficar isolada, se não existir um movimento revolucionário em outros países, não existirá nenhuma esperança de que chegue a alcançar o triunfo final. Se o partido bolchevique tomou todas as funções, o fez convencido de que a revolução amadurece em todos os países... Nossa salvação de todas estas dificuldades está na revolução européia”.

Posteriormente, e referindo-se a Trotsky e à extraordinária e exitosa mobilização política e militar do Exército Vermelho, Lênin expressava eufórico: “Temos esse homem! Os bolcheviques podemos fazer tudo!” Mas ninguém pode fazer tudo, nem sequer dirigentes da altura dos bolcheviques. O perigo de fazer da necessidade uma virtude, estava latente.

O PARTIDO MONOLÍTICO

O II Congresso da Internacional Comunista, reunido em 1920, aprova as famosas “21 Condições de Ingresso na Internacional Comunista”. Com elas se estrutura a Internacional como uma organização quase militar, baseada na expectativa de que os partidos comunistas se enfrentariam de forma imediata com o assalto ao poder. Impunha-se, então, a depuração de todos os elementos duvidosos ou vacilantes que pudessem colocar em risco o triunfo na batalha final. A grave crise que assolava todas as potências imperialistas afirmava esta perspectiva.
Mas os jovens partidos comunistas não contavam, nem por imaginação, com líderes com a formação ou a experiência dos bolcheviques. A maioria dos dirigentes mais experimentados da social-democracia tinham traído a causa. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht haviam sido assassinados na Alemanha.
O resultado inevitável foi que começou a se desenvolver um culto apaixonado e incondicional à disciplina. O jovem partido comunista uruguaio, por exemplo, interpretava desta maneira sua aceitação às 21 Condições:

“As diretivas dos Comitês Centrais são ordens... e essas ordens não se discutem, se acatam. Quando a Internacional Comunista assinala a nosso partido uma diretiva, este a acata sem discutir. Quando o Comitê Central de nosso partido assinala uma diretiva a algum centro... este também deve acatá-la”.

Não é infundado presumir que poderíamos encontrar expressões similares no resto dos jovens partidos comunistas desse momento. Quando, no III Congresso da Internacional Comunista, se atenua a perspectiva da proximidade da revolução mundial, Trotsky expressava que talvez, diferentemente do congresso anterior, “já não cabia esperá-la para os próximos meses, mas para os próximos anos”. Lênin e Trotsky se empenham, nesse congresso, na necessária etapa de preparação para a tomada do poder através de uma sistemática e paciente atividade para conquistar a maioria do proletariado e das massas pobres. São colocados em relevo, portanto, todos os problemas da tática e da estratégia revolucionária, com teses, resoluções e critérios que conservam indubitável valor. Não se modificam, em troca, os critérios organizativos, apesar de que Lênin havia expressado discordância com a redação das 21 Condições por considerá-las “demasiado russas”. Mas o próprio Lênin havia alertado, um ano antes, aos que pudessem copiar sem reflexão aos bolcheviques:

“Como se mantém a disciplina do partido revolucionário do proletariado? Como se comprova? Como se reforça? Primeiro, pela consciência da vanguarda proletária e por sua fidelidade à revolução, por sua firmeza, por seu espírito de sacrifício, por seu heroísmo. Segundo, por sua capacidade de se ligar, se aproximar e, até certo ponto, de se fundir com as mais amplas massas proletárias, mas também com as massas trabalhadoras não proletárias. Terceiro, pelo acerto da direção política que exerce esta vanguarda, pelo acerto de sua estratégia e de sua tática políticas, como condição de que as massas mais extensas se convençam disso por experiência própria. Sem estas condições é impossível a disciplina em um partido revolucionário... Sem estas condições as tentativas de implantar uma disciplina se convertem, de maneira inelutável, em uma ficção, em uma frase, em gestos grotescos. Mas, por outro lado, estas condições não podem surgir do nada. São formadas unicamente através de um trabalho prolongado, de uma dura experiência; sua formação se vê facilitada por uma acertada teoria revolucionária, a qual, por sua vez, não é um dogma, mas que apenas se forma de maneira definitiva em estreita conexão com a experiência prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário”.

Afora as famosas 21 Condições, que foram corretamente qualificadas por Claudín como “um modelo de sectarismo e de método burocrático na história do movimento operário”, o outro fator que contribuiu para consagrar a teoria do partido monolítico foi a própria evolução interna da Rússia e a prolongação e acentuação de seu isolamento internacional.
Terminada a guerra civil de forma exitosa, os bolcheviques se enfrentaram com dificuldades e desafios ainda maiores: a reconstrução da economia devastada, em uma situação de fome e miséria que ameaçava liquidar a revolução. Mesmo nessas condições e afrouxadas as tensões da guerra civil, se desenvolve dentro do partido uma aguda e aberta luta interna entre três frações. A chamada “Oposição Operária”, encabeçada por Aleksander Shliapnikov e Aleksandra Kollontai, propunha transferir o controle da indústria e da produção estatal aos sindicatos, eleições diretas para todos os postos do partido e, em geral, advogava por uma maior autonomia das organizações de base contra a excessiva centralização do Estado. A posição diametralmente oposta estava representada por Trotsky e Bukárin, que sustentavam uma franca subordinação dos sindicatos ao Estado. Lênin defendia uma posição intermediária, embora criticasse a “oposição operária”, a qual caracterizava como uma tendência sindicalista e anarquista; defendia a independência dos sindicatos em relação ao estado operário porque assinalava que esse se tratava de um estado operário “com deformações burocráticas”, cujos eventuais abusos podiam e deviam ser enfrentados pelos sindicatos.
Apesar das dificuldades e ameaças, é necessário remarcar o clima de absoluta liberdade em que se processou esta discussão, aberta e pública.

“Durante todo o mês de janeiro de 1921 o Pravda publicou dia após dia artigos polêmicos, onde os principais dirigentes do partido ventilavam opiniões diametralmente opostas. O partido publicou dois números de uma Folha de Discussão especial, com o objetivo de fornecer um lugar adequado para um intercâmbio de impressões mais detalhadas”.

Lênin ratificou a regra do partido aceita até então, mesmo que fustigando indolência a “oposição operária”:

Pode-se permitir que nos reunamos em grupos diferentes (especialmente antes de um congresso) e também pedir votos, mas é necessário fazê-lo dentro dos limites do comunismo (e não do sindicalismo) e, de tal modo que não incite ao riso”.

Mas antes que se reunisse o X Congresso do partido, teve lugar a insurreição de Kronstadt, que se constituiu na ameaça interna mais séria para o regime deste outubro de 1917. O sentimento da gravidade e precariedade da situação invadiu o congresso e empurrou todos os setores a estreitar fileira. Em seu breve discurso de abertura do Congresso, Lênin expressava esse sentimento geral:

“Vivemos um ano extraordinário, nos permitimos o luxo de discussões e disputas no seio do nosso partido. Esse luxo era realmente assombroso em um partido rodeado pelos inimigos mais fortes e poderosos... em um partido que carrega sobre seus ombros uma carga inaudita. Não sei como avaliam isto agora. Esse luxo está, agora, segundo lhes parece, plenamente de acordo com nossos recursos materiais e morais?”

Chegou-se, assim, à resolução de proibição das frações:

“O Congresso decreta a imediata dissolução de todos os grupos sem exceção, que se formaram com este ou aquele programa... O não acatamento desta decisão do Congresso motivará a exclusão incondicional e imediata do partido”.

Foi acrescentada pelo Congresso uma cláusula secreta conhecida como “ponto 7”, em que se davam plenos poderes ao Comitê Central para excluir qualquer membro do partido e até do próprio Comitê Central (com dois terços dos votos) “por qualquer brecha produzida na disciplina pelo ressurgimento ou tolerância do fracionalismo”. Segundo E. H. Carr, a decisão de conservar esta ameaça em segredo evidenciava a repugnância com que o Congresso a adotava, convencido de que se tratava de um mal necessário mas transitório, para cobrir as dificuldades da situação.

A ARMADILHA DO MONOLITISMO

A resolução do X Congresso do partido bolchevique teve funestas conseqüências. O processo de burocratização do Estado e do partido de Estado, que Lênin reconhecera como uma ameaça em seus últimos trabalhos, foi claramente promovido ao terminar de silenciar a crítica pública às ações do partido governante. É necessário ter em conta que a plena liberdade de organizar grupos e tendências é uma conseqüência inerente à livre publicidade das opiniões divergentes. Se uma opinião crítica se torna pública, está se convidando, implicitamente, a que quem por esse meio a conheceu, também a compartilhe e, em conseqüência, se agrupe e milite por essa posição, propondo as mudanças de rumo pertinentes. Embora a resolução do X Congresso não proibisse a publicidade de posições divergentes, a direção burocrática encabeçada por Stálin, com toda lógica, foi instrumentando o silenciamento do debate interno, reprimindo qualquer opinião crítica com o sonsonete de “fracionalismo”.
A resolução do X Congresso foi um erro crasso de Lênin e dos dirigentes bolcheviques e constitui uma completa sandice segui-la reivindicando como uma medida “transitória” obrigada pela situação. A plena liberdade de discussão política não é um luxo para tempos de bonança, mas a condição em que se fundamenta a unidade de ação. Isso é sabido por qualquer militante que tenha estado frente a uma greve difícil. A primeira condição para o triunfo não é a virulência da repressão contra os fura-greves, mas a possibilidade de que quem esteja contra ou vacile, possa expressar livremente suas opiniões na Assembléia, dando oportunidade do setor combativo debater com eles. Esta livre discussão é sempre a única possibilidade que temos para fortalecer a perspectiva do combate. A convicção e o heroísmo não se conquistam por decreto.
Para dizer com palavras de Rosa Luxemburgo:

“A missão histórica do proletariado, uma vez no poder, é criar uma democracia socialista no lugar de uma democracia burguesa, e não eliminar toda democracia. Mas a democracia socialista não começa somente na Tterra Prometida, uma vez estabelecidas as infra-estruturas da economia socialista, como presente de Natal ao heróico povo que, nesse período, sustentou com fidelidade um punhado de ditadores socialistas. A democracia socialista começa com a destruição do domínio de classe... no próprio instante da tomada do poder" .

É notável a cegueira de Lênin em não relacionar os problemas da burocratização do Estado, dos quais era consciente, com o regime de partido que propôs em 1921. Se era necessário defender a independência dos sindicatos em relação ao estado operário com deformações burocráticas, como não defender a plena liberdade de discussão no seio do partido único que controlava esse Estado e quase havia se fundido a ele, contra essas mesmas deformações? A mesma cegueira pode-se encontrar em seus últimos trabalhos dirigidos abertamente contra a burocracia. Assim, em suas propostas para organizar a Inspeção Operária e Camponesa, contra os abusos e roubos da burocracia em todos os níveis do aparato do Estado, Lênin propugnaria maiores medidas de controle e sanções draconianas levadas adiante pelos inspetores centralizados desde cima, desde o aparato. A ironia da história vai querer que esta função recaísse sobre... Stálin.
As próprias posições da “Oposição Operária” não eram mais que uma resposta contra os excessos do centralismo e da burocratização incipiente do partido e do Estado. Essa burocratização do partido podia ser medida no crescente poder do Secretariado do Comitê Central. Começou a funcionar em maio de 1919 com 30 empregados e, no momento do nono congresso do partido, em março de 1920, já tinha 150. Um ano depois, às vésperas do Décimo Congresso, o número havia se elevado para 602 empregados, mais um destacamento militar de 140 homens que atuavam como guardiães e mensageiros.
Este imenso poder acumulado pelo Secretariado do Comitê Central prossegue a toda marcha, apoiado nas resoluções do X Congresso. Somente em março de 1923 Lênin compreende o verdadeiro perigo que se aproximava do partido e propõe a Trotsky o famoso pacto contra Stálin. Imediatamente depois perde a fala e sua enfermidade o conduz a uma lenta agonia até a morte, 9 meses depois.

Mas, nem Lênin, nem Trotsky, nesse momento em que concordam na necessidade de substituir Stálin, retrocedem em relação às fatídicas resoluções do X Congresso, nem se colocam a reinstalação da plena democracia no partido. Meses mais tarde, na famosa “carta dos 46” (23 de outubro de 1923), assinada por um número significativo dos principais líderes históricos do bolchevismo, se faz uma exata descrição da vida interna do partido após o X Congresso:

“É algo conhecido por todos os membros do Partido: os membros que não aprovam tal ou qual decisão do Comitê Central ou inclusive de um Comitê de Província, que tenham tal ou qual problema de consciência, que se dêem conta em privado de tal ou qual erro, irregularidade ou desordem, têm medo de dizer nas reuniões do Partido e, inclusive, temem contar em conversas privadas, a menos que tenham confiança total na discrição de seus interlocutores. No interior do Partido desapareceu praticamente a livre discussão, afogou-se a opinião pública do Partido”.

No entanto, “os 46” não propunham que se revisse as decisões do X Congresso, mas ... que se cumprissem as mesmas (!), chamando Stálin a dissolver sua própria fração:

“A causa desta situação deve-se a que se perpetuou o regime de ditadura de uma fração no interior do Partido, fração constituída depois do X Congresso... Se esta situação não muda radicalmente em um futuro imediato, a crise econômica da Rússia Soviética e a crise da fração ditatorial no Partido danificarão seriamente a ditadura do proletariado na Rússia e no Partido Comunista Russo”.

Trotsky e “os 46” continuam presos mentalmente na idéia do “partido monolítico”, consagrado nas resoluções do X Congresso. Há uma mescla de ingenuidade e impotência em suas colocações. É certo que Stálin, junto com Zinoviev e Kamenev, tinha constituído uma fração para controlar o Secretariado e o Comitê Central, mas não se queria reconhecer (ou não se queria?) que a situação era uma conseqüência direta das resoluções proibindo os agrupamentos e o livre debate público das divergências, contrária a toda tradição anterior do bolchevismo.
Trotsky, que não tinha assinado a “carta dos 46” é, no entanto, o principal dos acusados na reunião conjunta do Comitê Central e da Comissão Central de Controle de 25 a 27 de outubro de 1923, e sua resposta também é uma patética defesa da disciplina autoritária implantada no X Congresso, errônea posição que logicamente não o salvará de ser defenestrado.

FEZ-SE DA NECESSIDADE VIRTUDE

No caminho que conduziu, primeiro à implantação do governo unipartidário e depois à restrição da democracia interna, com a adoção do “partido monolítico”, não há nenhuma teoria em particular, mas um conjunto de circunstâncias adversas, derivadas do isolamento da revolução. No balanço crítico das resoluções adotadas, é necessário destacar as “21 Condições de Ingresso na Internacional Comunista” e as resoluções do X Congresso do Partido Comunista Russo (bolchevique), como dois grossos erros, que contribuíram para a degeneração do partido bolchevique e da Terceira Internacional.
Posteriormente, tanto a concepção do “partido único” como do “partido monolítico” passaram a ser canonizadas pelo stalinismo a nível da teoria. Lukács, entre muitos outros, somou todo seu prestígio como teórico a esta verdadeira impostura, que ficou consagrada como “teoria leninista da organização”, ou simplesmente como o mito do “centralismo democrático”. Nos partidos comunistas de tradição stalinista, o centralismo democrático foi elevado à categoria de dogma inamovível, por cima de todas as outras questões teóricas que dizem respeito à estratégia e à tática políticas. Assim, um partido comunista pode ter adotado as linhas mais escandalosamente contrapostas ao longo de sua história, mas o que sempre perdura, contra o vento e a maré, é o “centralismo democrático” elevado à categoria de mito, ao ponto de que, para muitas gerações de militantes comunistas, desconcertados ante as espetaculares reviravoltas da linha partidária, o “centralismo democrático” é a verdadeira e única marca da identidade comunista.
Lemos, por exemplo, no órgão do Partido Comunista Uruguaio (Carta Popular, 9/8/96):

“O Comitê Central do PCU em sua primeira sessão posterior ao Congresso, reafirmou o princípio do centralismo democrático... componente fundamental do Partido de novo tipo... ferramenta fundamental que, aplicada não por imposição mas por aceitação consciente, é uma muralha ofensiva insubstituível contra toda tentativa de penetração inimiga”.

Os distintos critérios de organização que Lênin defendeu, desde as origens do bolchevismo até a tomada do poder, buscaram sempre a ativa participação das massas na vida do partido. Contra o modelo centralizado e cupular burguês, onde somente falam e decidem os chefes e uma massa passiva acata e vota, Lênin e os bolcheviques propugnavam um partido militante, onde a opinião e ação dos trabalhadores pudesse se expressar livremente, influir e decidir. A metáfora da muralha contra toda tentativa de penetração inimiga não é mais que um ressábio das medidas coercitivas que os bolcheviques se viram empurrados a tomar, no acerto e no erro, frente a um assédio real à revolução, pelas principais potências imperialistas do planeta. Este cerco imperialista é transfigurado, em troca, em sua reprodução mítica, como um perigo permanente de penetração... das idéias inimigas. Qualquer discordância aparece, então, como suspeita, como potencialmente perigosa para a unidade “monolítica” do partido.
Não se concebe que a vida do partido é necessariamente a confrontação permanente de opiniões, da luta política, impensável sem a livre publicidade e a livre circulação das idéias. Décadas de discurso stalinista contra o fracionalismo fizeram esquecer a verdadeira exaltação que Lênin fazia da luta fracional na social-democracia russa, como parte essencial da história do bolchevismo:

“As eminências estúpidas e as velhas comadres da II Internacional, que franzem o senho com desdém e soberba frente a abundância de ‘frações’ no socialismo russo e frente a encarniçada luta destas entre si, foram incapazes, quando a guerra suprimiu em todos os países adiantados a cacarejada legalidade, de organizar, mesmo que não fosse mais que aproximadamente, um intercâmbio livre (ilegal) de idéias e uma elaboração livre (ilegal) de concepções justas, semelhantes aos que organizaram os revolucionários russos na Suíça e outros países”.

O PARTIDO MONOLÍTICO E O TROTSKISMO

Apesar de que o mito do centralismo democrático afetou em sua forma mais esclerosada e aberrante aos partidos da tradição stalinista, toda a esquerda defensora da Revolução Russa se viu comprometida, uma vez que o mito se originou em resoluções impulsionadas pelos principais dirigentes da revolução.
No caso de Trotsky, vemos que este estrutura seu movimento, Oposição Internacional de Esquerda primeiro, IV Internacional depois, com os critérios ultra-centralistas da III Internacional, do qual foi um dos principais animadores e redator direto de muitas de suas principais teses e resoluções.
Acossado pela perseguição mais desapiedada, tanto do fascismo como do stalinismo, o movimento trotskista teve sua mais importante oportunidade de se enraizar como um movimento revolucionário de massas durante o desenvolvimento da Revolução Espanhola (1931-1937). No entanto, esta possibilidade se frustrou pela persistência da concepção monolítica do “partido internacional”.
Ante o surgimento de diferenças táticas entre a Esquerda Comunista espanhola, liderada por Andrés Nin e Juan Andrade, e o Comitê Executivo Internacional da Oposição de Esquerda, dirigido por Trotsky, vai-se à ruptura. É verdadeiramente revelador que nem Trotsky, nem Nin, formados na tradição da Internacional Comunista, fossem capazes de compreender que uma Internacional revolucionária somente pode se basear na colaboração das distintas correntes e organizações nacionais, respeitando suas idiossincrasias e sua autonomia, que inevitavelmente tem suas raízes na história e nas diferentes tradições, e até nas heranças culturais específicas em cada um dos países.
Nin e Andrade não estão de acordo com a diretiva internacional de Trotsky de realizar a tática do entrismo no Partido Socialista e se orientam, em troca, em constituir uma organização independente, o POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), em acordo com a corrente anti-stalinista de Maurín. Impossibilitado de acatar as diretivas de Trotsky, por considerá-las equivocadas, mas fiéis ao dogma da Internacional centralizada e disciplinada, não lhes ocorre postular e exigir à Oposição de Esquerda o respeito às decisões autônomas da seção espanhola; consideram inevitável a ruptura momentânea com Trotsky, que continuam considerando seu mestre. Trotsky, por seu turno, considerará a atitude dos trotskistas espanhóis como uma traição e lançará contra o POUM as mais duras diatribes. A ruptura condenou Trotsky ao papel de mero comentarista frente a revolução espanhola e contribuiu para o isolamento internacional do POUM, facilitando sua posterior destruição física pela repressão stalinista.
Sem que os protagonistas tivessem consciência disso, por cima desse trágico desencontro pairava a sombra das 21 Condições e o mito do “partido monolítico”. Depois do assassinato de Trotsky, a trajetória do movimento trotskista foi a história das permanentes rupturas e intrigas atrás do objetivo irrealizável da “reconstrução da IV Internacional baseada no centralismo democrático”, isto é, baseada no acatamento disciplinado a uma direção internacional.
Nas últimas décadas, o dirigente trotskista Pierre Lambert cunhou o novo conceito de “nacional-trotskismo”, usado como aríete para atacar qualquer corrente que pretendesse construir um partido pensando com sua própria cabeça e se negasse a aceitar suas diretivas. O conceito foi rapidamente adotado por outros dirigentes trotskistas (como o argentino Nahuel Moreno), que se sentiam candidatos para dirigir sua própria internacional. Em certas ocasiões, esta mania dirigista chegou a ter conotações risíveis, influindo nas mais loucas idéias sobre o tema de qual era o país por onde passava o eixo da luta de classes mundial. Assim, para os seguidores do argentinoMoreno era a Argentina; para o boliviano Guillermo Lora era a Bolívia e para o francês Lambert era a França ou a Europa.

Muito além das debilidades teóricas e políticas, até certo ponto inevitáveis, de todas as correntes trotskistas, a relativa fortaleza em seu momento do chamado Secretariado Unificado da IV Internacional, orientado por Ernest Mandel, teve que ver, provavelmente, com a renúncia, talvez de forma empírica, em estabelecer uma disciplina estrita em suas fileiras, adotando uma relação frouxa entre as diversas correntes nacionais.

CONCLUSÃO

Quando estão para serem cumpridos os 80 anos do triunfo da revolução de outubro, a primeira condição para render uma homenagem militante deveria ser resgatar seus líderes históricos, Lênin, Trotsky e os bolcheviques, do Olimpo mítico ao qual se viram desterrados durante tanto tempo. Despojados da estereotipada máscara de deuses, talvez ressurjam com muito maior nitidez seu verdadeiro rosto humano, seus acertos e erros, suas grandezas e suas debilidades. Reivindicá-los implica, necessariamente, discutir com eles à luz de toda a experiência histórica posterior.
Como qualquer ser humano, os bolcheviques também estiveram condicionados por sua época e por sua própria experiência, necessariamente limitada, por mais rica que tenha sido. A enorme proeza histórica que significou a defesa da revolução ao longo de vários anos de dificuldades inauditas, alimentou uma proverbial confiança em si próprios, em suas próprias forças e no partido que tinham forjado ao longo de décadas de experiências excepcionais. Que esse partido e essa Internacional pudessem chegar a se converter em instrumentos da reação burocrática primeiro, e da restauração capitalista depois, não pôde entrar em seus raciocínios em alguns momentos chaves que aqui recordamos. Cumpriram com êxito sua missão e a ninguém se pode exigir mais, sob pena de se acreditar na infalibilidade.
Para nós cumprirmos com a nossa, nas atuais condições do capitalismo, é necessário separar o joio do trigo. É necessário resgatar o bolchevismo no que realmente foi, a expressão mais elevada e a culminação de toda a tradição democrática revolucionária do proletariado europeu do século XIX.
Continuar reivindicando a “teoria” do partido único e do partido monolítico à luz do destino da URSS é fechar os olhos deliberadamente. Não é apenas uma impostura, é também um anacronismo. Para qualquer um que queira ver, 60 anos de partido único e monolítico na URSS não só não foram uma muralha contra o inimigo, mas foram a condição para que a burocracia dos Yeltsin, Gaidar e companhia pudessem apostar na restauração capitalista para assegurar seus privilégios.
Partido único e partido monolítico são duas caras da mesma moeda. Isaac Deutscher o definiu com precisão:

“O sistema unipartidário representava uma contradição essencial: o partido único não podia continuar sendo um partido no sentido aceito. Sua vida estava destinada a se reduzir e murchar. Do ‘centralismo democrático’, o princípio básico da organização bolchevique, sobreviveu somente o centralismo. O Partido manteve sua disciplina, não sua liberdade democrática. Não podia ser de outra maneira. Se agora os bolcheviques se empenhassem livremente em controvérsias, se seus dirigentes ventilassem suas diferenças em público, e se os militantes de base criticassem os dirigentes e sua política, tais coisas seriam um exemplo para os não bolcheviques e não se poderia esperar, então, que estes se abstivessem de discutir e criticar. Se se permitisse que os membros do partido governante formassem frações e grupos para defender opiniões específicas dentro do Partido, como se poderia proibir às pessoas de fora do Partido de formarem suas próprias associações e formularem seus próprios programas políticos? Nenhuma sociedade política pode ser muda em nove décimas partes e falante na outra décima. Depois de impor o silêncio à Rússia não bolchevique, o partido de Lênin teve que acabar por impô-lo a si próprio”.

A “teoria” do partido único e sua contra-cara do partido monolítico, tem sua origem nas circunstâncias que os bolcheviques se viram obrigados a confrontar e nos erros que cometeram. A reação burocrática encabeçada por Stálin a converteu em um dogma fundamental para assegurar seu domínio e seus privilégios, contra a crítica e a mobilização democrática dos trabalhadores.
No momento atual, quando a reconstrução da esquerda como movimento teórico e prático, exige como condição indispensável a discussão democrática mais ampla, rigorosa e fraternal entre as distintas correntes que se reclamam da tradição de luta do marxismo e do movimento dos explorados, o mito do centralismo democrático aparece como uma muralha, não contra o capitalismo, mas contra o rearme teórico e político necessário para combatê-lo.


Texto traduzido por: Brancão em Janeiro-Fevereiro/2004.
Extraído da revista Debates, nº 1, agosto de 1998, Editorial Antídoto, Buenos Aires, Argentina.